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O primeiro mês de amargos anos: como a Americanas (AMER3) chegou até aqui e o que esperar

A história que trouxe a operação de risco sacado ao vocabulário do mercado ainda tem muitos capítulos à frente

Foto: Shutterstock/thiago bacelar

Até o dia 11 de janeiro, às 18h31, a Americanas (AMER3) valia cerca de R$ 10,8 bilhões na Bolsa. As perspectivas eram positivas e muitos a colocavam como uma das varejistas mais bem posicionadas no país, até que no minuto seguinte o império de quase 100 anos desmoronou.

As inconsistências contábeis alegadas de R$ 20 bilhões instauraram mais dúvidas do que certezas, que culminaram no pedido de recuperação judicial da empresa uma semana depois. Exatamente um mês depois, a Americanas vale menos de R$ 1 bilhão na B3.

As dúvidas, porém, não foram as causadoras da corrida da companhia à Justiça. O responsável foi o endividamento bruto acumulado nos últimos anos, que hoje se aproxima de R$ 50 bilhões – um número bem maior que os R$ 19,3 bilhões reportados no balanço mais recente da companhia, referente ao terceiro trimestre do ano passado.

Hoje, um mês após um dos maiores escândalos do mercado de capitais no Brasil, muitas respostas ainda devem ser apresentadas, mas poucos esclarecimentos são esperados no curto prazo. 

Segundo a lei 11.101, de 2005, que rege a recuperação judicial, o processo deverá ter o prazo máximo de dois anos. Na prática, esse prazo pode ser estendido com autorização da Justiça.

O motivo para o crescimento da Americanas

A operação que levou a Americanas (quase) à ruína é o tal do risco sacado (na terminologia em inglês, forfait). 

Embora desconhecida da maior parte do mercado, que deixava de lado seu alto custo, ela é tradicional e faz parte do dia a dia do varejo, sendo responsável pelo financiamento do crescimento dos negócios, algo tão demandado pelos investidores.

O instrumento consiste em incluir uma instituição financeira como intermediadora dos negócios com os fornecedores.

Numa espécie de tripé, os fornecedores repassam os produtos à varejista e recebem o pagamento dos bancos. A varejista, por sua vez, paga os bancos em um prazo mais alongado, mas com juros salgados.

O problema está quando a empresa deixa a transparência para trás e não menciona o real tamanho desses compromissos, já que o endividamento corrente, que são os empréstimos, debêntures, entre outros, aparecem na estrutura de capital.

Saiba mais:

Pouco após a Americanas divulgar problemas de contabilidade, o então ex-CEO da companhia Sergio Rial disse que as dívidas relacionadas ao risco sacado estavam registradas no lugar errado do balanço, mas haviam sido pagas. 

A verdade, porém, é que as operações não foram registradas pela Americanas – nem no lugar certo nem no lugar errado do balanço. Além disso, a empresa também não havia quitado essas dívidas. Foi o reconhecimento disso que fez a dívida bruta da empresa mais que dobrar.

Além de acompanhar os desdobramentos da crise da Americanas na esfera judicial, o mercado questiona qual era a motivação para que todo esse embaraço não ter sido revelado por anos a fio, sendo pouco provável que ninguém soubesse das falhas no reporte de resultados.

A remuneração dos executivos estava em linha com a dos pares. Além disso, havia programas de stock option vigentes na Americanas, o que, em tese, ajudaria a alinhar o interesse da alta direção da empresa ao dos investidores. 

Isso porque a remuneração em opções de ações está atrelada a alguns fatores, como melhora do desempenho operacional da empresa, valorização dos papéis no mercado e período mínimo de permanência dos executivos na companhia. Na teoria, se um ganha, todos os stakeholders ganham.

Mas o que realmente motivou o rombo bilionário talvez não nunca venha à tona, embora os conhecidos acionistas de referência tenham construído a cultura que rege a Americanas. 

A (in)sustentabilidade do risco sacado?

A partir de agora, a operação de risco sacado passará pelo crivo dos investidores quando os balanços das competidoras forem divulgados. O custo desse financiamento ao crescimento das empresas será questionado.

Após as revelações da Americanas, a Via (VIIA3) apresentou onde essas contas estão em seu balanço. E, de fato, a empresa é mais transparente do que sua concorrente. 

O risco sacado da dona da Casas Bahia é mencionado como “Fornecedores Convênio” no balanço. Com base no terceiro trimestre de 2022, a operação geraria um custo de R$ 2,5 bilhões à varejista nos 12 meses subsequentes, numa taxa de juros de 18,89% ao ano. 

A taxa tem um prêmio de 5,2 pontos percentuais sobre o atual CDI, o que se justifica dado o risco corrido. 

Mas é muito difícil que os negócios realizados por meio dessa intermediação financeira tenham rentabilidade que compense a taxa de juros. O retorno sobre capital investido (ROIC) da Via é de 4%. 

Embora a recuperação judicial da Americanas tenha trazido luz aos problemas do risco sacado, esse tipo de operação continuará sendo realizada, principalmente por fornecedores pequenos.

Segundo a Cerc, registradora de recebíveis de crédito autorizada pelo Banco Central, o mercado de duplicatas entre fornecedores e bancos movimentou R$ 68,6 bilhões no ano passado, e representa apenas uma fração do mercado de recebíveis se considerados os outros tipos de crédito. 

O reflexo no varejo brasileiro

O mercado avalia que Magazine Luiza (MGLU3) e Mercado Livre (MELI34) podem ocupar o espaço deixado pela Americanas. Vale ressaltar que a varejista carioca quase centenário possuía 53 milhões de clientes. 

As duas concorrentes possuem o e-commerce mais calibrado e capacidade de investimento para aumentar a operação, sustentando a demanda adicional. 

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Segundo informações da consultoria SimilarWeb, apresentadas pelo Itaú BBA, entre os dias 11 e 31 de janeiro a Americanas teve queda de 57% no tráfego do site do e-commerce.

Magazine Luiza e Mercado Livre também poderiam utilizar a estrutura do marketplace e agregar quem vendia apenas na Americanas, ou angariar por completo esses vendedores digitais que compartilhavam as plataformas.

No terceiro trimestre do ano passado, a Americanas dizia ter 149 mil sellers, e o Magazine Luiza, 236 mil. Em sua plataforma, o Mercado Livre afirma ter mais de dez milhões de vendedores, incluindo as grandes marcas. 

Copo meio vazio

Enquanto para os acionistas de Magazine Luiza e Mercado Livre a turbulência na Americanas possa ser positiva, para o restante do varejo o efeito é inverso. 

Muitas empresas menores dependiam quase que por completo da Americanas. São quase oito mil credores, sendo a maior parte pequenos comerciantes. 

Além disso, o efeito cascata pode chegar aos shopping centers. A Americanas tem notificado shoppings com lojas físicas da companhia que, em razão da decisão judicial pela suspensão das cobranças, não irá pagar os aluguéis em atraso até a data da abertura da RJ. 

De acordo com o Broadcast, são cerca de 90 credores de shopping centers que esperavam receber um valor total e R$ 11,6 milhões da companhia. Os dez maiores nomes correspondem a 80% desse valor.

Com a participação em dois shoppings, a segunda administradora mais exposta é a Iguatemi (IGTI3), com R$ 2,36 milhões a receber. Juntas, as duas unidades equivalem a 15,6% da ABL (Área Bruta Locável) da companhia, mas o impacto material deve ser irrisório.

Americanas no campo judicial

O caso da Americanas extrapola o campo dos negócios e ocupará espaço no Judiciário do país. 

Atualmente, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) possui dez processos administrativos em curso para averiguar as inconsistências contábeis da varejista. Ainda há mais dois processos relacionados a uso de informação privilegiada.

Em nota, a autarquia disse que “não tolerará ilícitos que atentem contra a higidez e o adequado funcionamento do mercado de capitais”. São investigadas:

  • Irregularidades na divulgação das informações;
  • Negociação de ativos pela empresa;
  • Conduta de acionistas e controladores;
  • As agências de classificação de risco;
  • Intermediários de ofertas da empresa (recentemente a Americanas vendeu debêntures);
  • Denúncias recebidas pela CVM. 

Os últimos quatro processos apuram eventuais irregularidades das auditorias independentes que acompanharam os balanços da varejista nos últimos anos: PwC e KPMG, duas das quatro maiores empresas de auditoria do mundo. 

A Americanas agora ostenta o posto de quarta maior recuperação judicial da história do Brasil, ficando atrás de Novonor (antiga Odebrecht), Oi e Samarco. 

A então Odebrecht entrou em RJ em 2020 e ainda segue seu calvário. A Oi teve seu processo iniciado em 2016 e finalizado em 2022, mas indica que pode ter uma recaída nos próximos meses. A Samarco, por sua vez, teve seu pedido aprovado em junho de 2021 e também ainda não conseguiu concluí-lo, mesmo tendo gigantes da mineração como sócias.

O histórico recente aponta para um processo longo e tortuoso da Americanas, até que um dia se livre de uma dívida hoje impagável. A dúvida de se um dia a empresa voltará a ser o que era, por ora, passa longe de estar em pauta.

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