Quando a pandemia deu os primeiros sinais de melhora, no segundo semestre de 2020, começaram a despontar, aqui e ali, as primeiras notícias que exaltavam as empresas que estavam conseguindo recuperar o nível de receita que tinham antes de o isolamento social esvaziar as ruas e fechar as portas do comércio.
A cada trimestre de divulgação de resultados, o número de companhias que estavam “deixando a pandemia para trás” crescia e, hoje, já é possível afirmar que a maior parte das empresas que fazem parte do Ibovespa, o principal índice acionário da Bolsa, já têm um faturamento igual ou superior ao de antes do início da crise de saúde, ainda que contem com a ajuda da inflação para impulsionar a receita.
Há, porém, algumas retardatárias, aquelas que ainda correm atrás do prejuízo.
Segundo levantamento feito pela Agência TradeMap, são cinco as empresas do Ibovespa que ainda estão abaixo do nível pré-pandemia: Gol (GOLL4), Azul (AZUL4), CVC (CVCB3), brMalls (BRML3) e Cogna Educação (COGN3) — em uma comparação que considera a receita dos últimos quatro trimestres com dados disponíveis (até o primeiro trimestre deste ano) contra o intervalo dos quatro trimestres até os primeiros três meses de 2020 (a pandemia teve início no Brasil na segunda quinzena de março de 2020).
O leitor mais atento com certeza reparou que, das cinco, três estão ligadas ao setor de viagens (Gol, Azul e CVC), um dos que mais sofreram com a crise. Com o isolamento social, os aeroportos passaram por duras restrições de funcionamento e, mesmo quando algumas medidas foram flexibilizadas, viajar tornou-se um luxo para os brasileiros, que viram a renda ficar mais escassa durante a crise e já se davam por satisfeito em poder sair na rua.
Não por acaso, as duas empresas que mais estão distantes de retomar o nível pré-pandemia são CVC e Gol. A primeira soma, em 12 meses, uma receita que está 40,6% abaixo dos 12 meses até o início da crise, enquanto a segunda amarga uma defasagem de 34,8%.
Para o estrategista de ações da corretora do Santander, Ricardo Peretti, o setor de viagens também sofre porque ainda há algum receio de parte da população com o vírus, o que limita a mobilidade. “É um resquício da pandemia”, disse, em entrevista à Agência TradeMap.
Segundo ele, o setor também foi fortemente afetado pela guerra entre Rússia e Ucrânia, que atrasou ainda mais a recuperação. O conflito elevou o preço do petróleo no mercado internacional e deixou mais caros os combustíveis usados pelas aeronaves, aumentando os custos e os preços das passagens, que afastam o consumidor.
A Gol, por exemplo, mais do que dobrou os seus gastos com combustíveis no primeiro trimestre, com um aumento de 113%, para R$ 1,2 bilhão. Vale lembrar também que o dólar voltou a subir após o início da guerra na Ucrânia e cerca de 60% das despesas das companhias aéreas são atreladas à moeda americana.
Para piorar, a inflação acelerou no Brasil, permanecendo por mais tempo em um nível superior a 10%, enquanto a taxa básica de juros, definida pelo Banco Central, saltou de 2% ao ano para 13,75% ao ano ao longo do último um ano e meio — um cenário que deixa o consumidor com menos disposição para abrir a carteira.
A própria CVC, há dois meses, já admitia que o contexto macroeconômico poderia colocar a retomada em risco.
“Com o arrefecimento da pandemia, observamos que as pessoas estão matando a saudade de viajar, mas, lá na frente, o cenário econômico pode começar a ter impacto”, disse o CEO da companhia, Leonel Andrade, em teleconferência com analistas realizada em maio, para comentar os resultados do primeiro trimestre.
À época, a companhia já sentia uma desaceleração do ritmo do negócio, após um “boom” inicial para atender a demanda que ficou reprimida durante o período mais duro da pandemia.
No primeiro trimestre de 2021, as reservas confirmadas pelos clientes a viagens para destinos nacionais representavam 58% do nível do trimestre equivalente de 2019 (antes da pandemia). No terceiro trimestre, saltou para 89%, mas, no quarto, voltou a cair, para 79%. No primeiro trimestre deste ano, recuou novamente, para 63%.
De acordo com o executivo, o que a CVC tem procurado fazer é adequar os produtos à realidade dos clientes. “Não acreditamos que uma pessoa vai deixar de viajar porque a viagem está cara, se nós adaptarmos o produto. Uma viagem de dez dias, por exemplo, pode virar uma viagem de seis dias”, disse, na teleconferência.
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Para Peretti, do Santander, embora o cenário macroeconômico tenha atrasado a recuperação do setor de viagens, a retomada deve acontecer em algum momento, mesmo que aos poucos. “À medida que as pessoas vão se preocupando menos com o vírus, vão voltando a viajar. Mas em algum momento essa demanda vai esbarrar no preço, com a inflação batendo no bolso, o que deve fazer com que a retomada seja gradual”, disse.
A entrada da brMalls na lista também não surpreende. A operadora de shoppings, assim como todas as empresas ligadas ao varejo físico, sofreu com a pandemia, mas tem apresentado uma recuperação mais lenta em relação a seus concorrentes do setor, por ter um público consumidor mais diversificado.
As redes de Iguatemi e a Multiplan, por exemplo, têm maior exposição a clientes de renda mais alta, o que permitiu a elas retomarem o nível pré-crise com mais velocidade, enquanto a brMalls, mais focada na classe média, se recupera em ritmo mais devagar.
Nos 12 meses encerrados no primeiro trimestre, a brMalls teve receita líquida de R$ 1,2 bilhão, 1,6% abaixo dos 12 meses encerrados no primeiro trimestre de 2020.
A Cogna, por sua vez, focada em ensino superior, viu a receita cair por causa do foco no ensino a distância durante a pandemia, uma vez que os cursos online cobram mensalidades menores.
Mesmo que o presencial esteja voltando aos poucos, a companhia pretende continuar apostando no EAD, por causa dos custos menores, mas vai demorar mais retomar para retomar o nível de receita que tinha antes da pandemia, quando o presencial era o grande foco.
Segundo a própria companhia, a receita total da Kroton, seu negócio de ensino superior, só deve voltar a crescer a partir de 2023. A expectativa para 2022 é ficar perto da estabilidade, após uma queda de 13,4% em 2021.
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Nem tudo é receita
Para identificar as empresas que ainda correm atrás do prejuízo, não basta olhar apenas as que ainda estão com receita abaixo do nível pré-pandemia. Até porque a inflação disparou desde o início da crise e isso contribui para impulsionar o faturamento das empresas, que vendem seus produtos a preços maiores. A retomada, portanto, pode ser enganosa se for analisada apenas por esse ponto de vista.
A Hapvida, por exemplo, é uma empresa que já está com uma receita em 12 meses que é quase o dobro da que tinha antes da pandemia, mas é apontada por analistas do mercado como uma companhia que frustrou durante esse período de arrefecimento do número de casos de Covid-19.
A empresa, que opera tanto com uma rede de hospitais como com plano de saúde, viu a demanda pelos seus serviços crescer de forma acelerada durante a pandemia, por razões óbvias, como aconteceu para todo o setor.
O problema é que, na rede de hospitais, se os leitos estão lotados para atender pacientes com Covid-19, a empresa perde receita por estar deixando de realizar procedimentos médicos mais caros, como cirurgias eletivas. No negócio de plano de saúde, a empresa passa a ter maiores custos, já que os clientes estão recorrendo mais à cobertura.
Em 2021, os custos totais da empresa com assistência cresceram 30,9% em comparação a 2020, enquanto a taxa de sinistros saltou para 69%, de 60,9% no ano anterior.
No primeiro trimestre de 2022, último resultado disponível, os custos seguiram em alta, com um avanço de 16,9% em relação a igual período do ano passado, e a sinistralidade deu mais um salto, para 71,4%, ante 65,5% no nível de um ano antes.
O gestor de ações Leonardo Rufino, sócio da Mantaro Capital, tinha uma posição em Hapvida, mas se decepcionou com os números da empresa durante o período de arrefecimento da crise. “Achávamos que, com a pandemia ficando para trás, haveria uma recuperação da companhia, com uma menor sinistralidade, mas o alívio está sendo menor que o esperado”, disse à Agência TradeMap o gestor, que deixou de investir na Hapvida.
A empresa, além de ainda estar atendendo uma demanda maior do que a imaginada para esse momento, sofre com o aumento dos custos médicos, pressionados pela inflação.
Rufino também cita o caso da Natura. A companhia, diz, também tem sofrido com o aumento dos custos, por causa da inflação, e com uma demanda ainda fraca, em meio a uma atividade econômica que patina.
No primeiro trimestre, a Natura viu seu prejuízo mais que quadruplicar em relação ao mesmo período em 2021. O prejuízo líquido somou R$ 643,1 milhões no período, valor 314% maior que a perda de R$ 155,2 milhões registradas nos três primeiros meses do ano passado.
O Ebitda (o lucro antes de juros impostos, depreciação e amortização), por sua vez, somou R$ 515,7 milhões, o que representou um recuo de 37,8% na mesma base comparativa. E a margem Ebitda foi de 7,2%, uma queda de três pontos percentuais em relação aos 10,2% registrados no primeiro trimestre de 2021.
“Está se perpetuando uma situação atipicamente ruim que não deveria ser perpetuada”, disse Rufino.
Até a Bolsa sofre…
Nessa corrida para recuperar o nível pré-pandemia, sobrou até para a B3, a dona da Bolsa e que também negocia suas ações. Com a alta da Selic, a renda variável perdeu atratividade e diminuiu o volume de negociações no mercado.
A empresa tem como principal fonte de receita as comissões que leva em cada uma das operações de compra e venda de ações no mercado. Se os juros sobem, os investidores se interessam menos por ações e acabam migrando para a renda fixa, o que, naturalmente, diminui o faturamento da B3.
No seu balanço, a empresa que controla a Bolsa afirmou que a escalada do conflito entre Rússia e Ucrânia trouxe incerteza aos mercados financeiros globais e aumentou a pressão inflacionária nas principais economias do mundo.
No Brasil, lembrou a B3, a preocupação com a disparada dos preços levou o Banco Central a reforçar o movimento de aperto monetário e elevar a taxa de juros básica, que finalizou o trimestre em 11,75%.
Nesse cenário, com o aumento de aversão a risco no mercado internacional e alta da taxa de juros no Brasil, o volume financeiro médio diário negociado (ADTV) no segmento de ações na B3 atingiu R$31,2 bilhões no primeiro trimestre, queda de 15,3% em relação ao primeiro trimestre de 2021.
Além disso, com o aumento dos juros, o cenário também se tornou menos favorável para IPOs, uma outra fonte de receita para a B3. Uma série de empresas que se preparava para abrir capital decidiu desistir da oferta ou adiou para um outro momento, na maioria das vezes sem uma data definida.
“Havia uma expectativa de que, por ser ano eleitoral, haveria mais volatilidade, aumentando o volume de negócios, mas as estimativas de avanço da Selic foram sendo corrigidas para cima. Se antes achávamos que a Selic pararia em 11%, isso passou para 12%, 13%, 14%… É natural que haja uma migração para renda fixa”, disse Peretti, do Santander.
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Para ele, a Bolsa deve demorar um pouco mais para se recuperar, porque depende de a Selic voltar a cair, para que a renda variável retome a atratividade. “Por enquanto, a expectativa é que os juros só voltem a ser reduzidos em meados do ano que vem”, afirmou o estrategista. “E, quando começar a cair, vai ser gradual.”
O próprio Santander, na sua última revisão de cenário, passou a prever uma Selic a 14,25% ao fim deste ano, ante uma expectativa anterior de 13,50%. E, para o fim de 2023, a previsão passou de 10% para 12%.