Um dos principais temas econômicos de 2023 é a reforma das regras fiscais que ajudam a controlar os gastos públicos. O governo federal pretende começar este debate nos próximos meses, e o resultado pode fazer a Bolsa disparar.
A nova âncora fiscal que substituirá o teto de gastos deve ser anunciada até abril, segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Desde o final do ano passado, quando ficou evidente que a situação das contas públicas era pior do que a prevista, o mercado financeiro do Brasil foi tomado por um clima desfavorável para o preço das ações.
Como o governo indicou que precisaria gastar mais que o esperado, a perspectiva para a inflação piorou e fez aumentar as apostas de que os juros, os principais inimigos das empresas e do mercado de renda variável, continuariam altos.
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Segundo uma pesquisa recente do Bank of America, publicada em 17 de janeiro, quase 40% dos gestores disseram que ficariam mais otimistas com o mercado de ações brasileiro se o governo conseguisse aprovar um conjunto de regras fiscais confiável.
Na situação atual, em que há pouca visibilidade sobre o projeto que virá, dois quintos dos gestores consultados pelo BofA acham que o Ibovespa pode terminar o ano entre 110 mil e 120 mil pontos, e a maioria acha que o índice não passará de 130 mil pontos.
Nesta segunda-feira (23), o Ibovespa está perto dos 113 mil pontos – o que dá uma ideia de quanto o desempenho da Bolsa pode melhorar se o mercado for convencido de que haverá ordem nas contas públicas.
Quais são as regras fiscais no Brasil?
No Brasil, há três regras que determinam como e quanto o governo pode gastar. A mais famosa – e polêmica – é o teto de gastos.
Introduzido em 2016, este mecanismo limita o crescimento das despesas públicas à inflação acumulada no ano anterior. Isso significa que, em termos reais, a despesa está “congelada” desde aquele ano.
A premissa desta regra é que, sem o aumento real dos gastos públicos, o crescimento da economia e da arrecadação reduziria a necessidade de o governo tomar empréstimos, o que eventualmente geraria uma sobra de dinheiro para diminuir o endividamento.
O problema do teto de gastos é justamente quando a economia passa por algum perrengue.
Em geral, quando há uma crise econômica, o governo tende a gastar mais – seja por causa de auxílios à população, como o seguro-desemprego, seja para conter os efeitos negativos sobre empresas. Com o teto, a margem para esta reação fica muito reduzida.
Isso significa que se a economia vai bem, o teto de gastos ajuda o desempenho a ser ainda melhor, porque melhora o quadro fiscal com mais rapidez. Mas se a economia vai mal, piora a situação. Em economês isso tem nome: política pró-cíclica.
Não por acaso, houve uma forte pressão política nos últimos anos para afrouxar o teto de gastos. Algumas das mudanças recentes excluíram despesas do limite previsto em lei (precatórios, por exemplo), ou deixaram o limite maior para permitir aumento de gastos.
Um outro mecanismo de controle das contas públicas no Brasil é a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal). Ela estabelece limites para gastos com pessoal e para a dívida, além de obrigar a administração pública a estabelecer metas para o resultado primário – o valor que sobra (ou falta) para o governo depois de ele ter pago todas as contas exceto empréstimos e juros.
Há ainda um terceiro dispositivo, conhecido como a regra de ouro dos gastos públicos. Em linhas gerais, ela proíbe o governo de tomar empréstimos para pagar despesas de funcionamento da máquina pública – salários, por exemplo.
As regras fiscais do Brasil funcionam?
A resposta curta dos especialistas ouvidos pelo TradeMap é: não.
Segundo Bráulio Borges, economista da LCA e pesquisador-associado do FGV IBRE, o conjunto das regras brasileiras já foi eficaz em determinado momento, o que se comprova com a melhora dos indicadores fiscais em anos anteriores. Mas muitas precisam ser melhoradas, diz ele.
O especialista diz que é preciso encontrar uma nova âncora fiscal – já que o teto de gastos foi “desmoralizado” pelas várias alterações sofridas nos últimos anos, perdendo a eficácia no controle das despesas – e as demais regras precisam de uma atualização.
“Mesmo a regra de resultado primário anual tem situações novas, não previstas pela LRF”, disse Borges. Ele cita como exemplo o tratamento dado aos royalties que o governo recebe pela exploração de petróleo. Embora seja uma receita extraordinária, ela costuma ser usada para pagar por despesas recorrentes e melhora os indicadores fiscais de regiões produtoras.
Gastos em crescimento
O consultor econômico Raul Velloso, especialista em contas públicas, considera que, para além do conjunto de regras fiscais, o problema maior é o crescente volume de despesas obrigatórias do governo.
Só os gastos com Previdência e assistência social, por exemplo, mais que dobraram desde a promulgação da Constituição de 1988, para perto de 70% dos gastos públicos, segundo ele.
“Quando se tem uma estrutura destas, nenhuma regra fiscal, que pode ter até funcionado em um ou outro país, consegue funcionar no Brasil”, afirma.
Ao longo das últimas décadas foram feitas reformas para tentar diminuir o peso destas despesas no Orçamento. A mais recente delas foi a da Previdência, que mitigou o crescimento dos gastos com aposentadorias, mas não resolveu o problema.
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O professor associado e pesquisador da Faculdade de Economia da USP em Ribeirão Preto, Luciano Nakabashi, destaca que a solução encontrada pelo governo para lidar com as despesas crescentes foi aumentar impostos e vincular a receita a determinados gastos. “Mas quando a receita cai, a despesa não cai”, acrescenta.
“Não tem margem de manobra. O que precisaria é fazer reforma para redução de gastos”, afirmou.
Como funciona em outros países?
Controlar as despesas públicas não é um problema exclusivamente brasileiro, principalmente depois da pandemia de Covid-19.
Ao longo da última década, a relação entre a dívida e o PIB (Produto Interno Bruto) de países ricos e pobres disparou. Alguns deles, inclusive, passaram a dever mais do que produzem.
Há, porém, países que registraram trajetórias melhores do que outros. A Suíça é um deles, e isso pode estar relacionado à estrutura do controle de gastos por lá.
Assim como o Brasil, o governo suíço também aplica um teto às despesas públicas, mas com regras diferentes.
Na Suíça, os gastos não podem ultrapassar a receita do governo prevista para um determinado ano. Esse valor da receita é ajustado de acordo com o ciclo econômico (e não pela inflação, como ocorre no Brasil).
Além disso, se por algum motivo o governo gastar mais que o permitido, é obrigado a compensar esse desvio futuramente.
E há um limite de tolerância para o descumprimento da regra: o valor do desvio não pode exceder 6% das despesas totais. Se isso acontecer, a lei obriga a adoção de medidas compensatórias.
Na prática, com este desenho, o teto de gastos passa a ser anticíclico – ou seja, ajuda a economia em tempos difíceis, e coloca um freio no crescimento quando a situação melhora.
Limite para a dívida
Na Alemanha e nos Estados Unidos, o sistema usado para controlar as contas públicas é o limite para a dívida. Sob este modelo, há um limite para o endividamento público, e não para as despesas do governo.
Os alemães introduziram a regra em 2009 prevendo que, por ano, o governo só poderia tomar emprestado o equivalente a 0,35% do PIB.
A mudança foi eficaz: a relação entre a dívida e o PIB do país diminuiu de 73% em 2009 para cerca de 60% em 2019, ano que antecedeu a pandemia.
Os críticos da regra, no entanto, dizem que ela foi eficaz até demais, e que a Alemanha não tirou proveito do resultado. Ao longo deste período de redução no endividamento alemão, os juros dos títulos da dívida do país chegaram a ficar negativos.
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Ou seja, o mercado estava “pagando” para emprestar dinheiro à Alemanha, indicando que a austeridade fiscal poderia ter sido trocada por investimentos públicos, o que só ocorreu durante a crise trazida pela Covid-19.
Nos EUA, desde 1917 há um limite para a dívida pública, mas ele fez pouco para melhorar a situação fiscal americana.
No país, o teto é aplicado ao volume total da dívida, e só pode ser modificado com autorização do Congresso. Embora idealmente o governo devesse respeitar o limite, na prática ele é rompido com frequência, e dá munição para que o Congresso do país faça exigências ao governo de plantão em troca de limites maiores.
Os EUA, no entanto, têm a vantagem de serem o país emissor do dólar, a moeda usada como referência pela economia mundial, e os dramas fiscais de lá praticamente não afetam a economia americana, já que sempre há gente disposta a emprestar dinheiro ao governo.
Chile pode servir de exemplo
O Brasil é um país emergente e grande exportador de commodities, e se beneficiaria de um modelo semelhante ao do Chile, que também se enquadra nesta fórmula, segundo Borges.
A regra chilena funciona assim: especialistas calculam qual deve ser o resultado econômico de um determinado ano, levando em consideração uma série de fatores – entre eles o preço do cobre, commodity que ocupa um grande espaço da pauta de exportação chilena.
Feito isso, é calculada a arrecadação que o governo deve registrar no período, e quanto o governo poderá gastar. A despesa do governo depende da meta fiscal. Quando a regra foi introduzida, em 2001, o objetivo era manter um superávit primário de 1% do PIB. Nos anos seguintes, a meta foi afrouxada.
Se a economia do Chile supera o desempenho previsto, o governo direciona a receita extra para reduzir a dívida. Se ficar aquém do esperado, pode se endividar. “O Chile conseguiu efetivamente introduzir uma política fiscal que é anticíclica. Quando a economia está em recessão, pode gastar, reduzir impostos, sem que mercado questione a sustentabilidade fiscal”, diz Borges.
Ele acrescenta que, no caso do Brasil, o próximo arcabouço fiscal deve prever essa flexibilidade e, ao mesmo tempo, prever um período claro para que o governo equilibre as contas caso precise gastar mais.
“A gente tem que ser anticíclico não só em crises, mas em todos os momentos do ciclo. Nos momentos de bonança ajudando o Banco Central. Política fiscal não tem que ser anticíclica só em recessão”, afirma.