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Americanas (AMER3): o que ainda está em aberto e precisa de explicações

Após inconsistências contábeis de R$ 20 bilhões serem reveladas, o mercado ainda tem muitas dúvidas

Foto: Shutterstock/ImagensstockBR

O ano mal começou e a Americanas (AMER3) já está nos livros de história. A empresa divulgou que possui cerca de R$ 20 bilhões em dívidas que passaram pelo balanço, mas não foram contabilizadas.

O caso, que foi acompanhado de perto pela Agência TradeMap desde as primeiras horas da manhã de ontem, chamou atenção dos investidores tanto pela magnitude dos valores que ficaram fora do radar ao longo dos últimos anos quanto pela falha de comunicação da Americanas.

Os R$ 20 bilhões citados pela Americanas equivaliam ao dobro do valor de mercado da companhia na quarta-feira (11), antes de o problema ser divulgado pela companhia.

No mesmo documento em que divulgou o rombo, a Americanas também comunicou a renúncia do então CEO Sergio Rial, e do CFO, André Covre. Ambos estavam na empresa há menos de duas semanas.

Na manhã de quinta-feira (12), Rial, que não era mais executivo da Americanas, prestou alguns esclarecimentos numa entrevista coletiva virtual restrita a mil pessoas, organizada pelo BTG Pactual. A Americanas, vale lembrar, possui mais de 146 mil investidores pessoas físicas na B3.

Após o evento, um vídeo divulgado pela empresa trouxe mais tentativas de esclarecimentos e apaziguamento do mercado por parte de Rial.

Muita coisa ainda está em aberto e carece de explicações. Os investidores passam avaliar, especular e fazer contas sobre os pontos a seguir. 

Onde, efetivamente, estão os R$ 20 bilhões mencionados?

Os valores mencionados por Rial em suas comunicações, tanto no fato relevante como em perguntas dos investidores na entrevista coletiva, referem-se a o que é comumente chamado de risco sacado. 

O famoso termo nos meandros do setor representa uma operação de capital de giro das varejistas realizada numa espécie de tripé, formada por:

  • Varejistas;
  • Fornecedores;
  • Bancos.

O tamanho da operação varia conforme a proporção e necessidade de cada um dos pés da operação.

Via de regra, as varejistas adiam o dia do pagamento aos fornecedores, já que antes precisam receber dos clientes; já os fornecedores precisam receber mais rapidamente. O banco entra como intermediador.

Saiba mais:

Resolvendo o problema das partes, as instituições financeiras pagam os fornecedores num prazo curto e cobram das varejistas em um prazo maior, mas carregado de juros. Portanto, aqui a varejista deixa de ter uma conta a pagar a fornecedores e passa a ter uma dívida bancária onerosa, passiva de despesas financeiras.

A operação de risco sacado é legal e reconhecida pela CVM, que externou seu entendimento em ofícios-circulares entre 2016 e 2017. Porém, para a CVM, há a necessidade de registrar este tipo de transação como passivo oneroso – que é o que a Americanas não fez.

No balanço do terceiro trimestre de 2022, a conta de fornecedores no balanço patrimonial era de R$ 5 bilhões. Enquanto isso, a empresa reportava empréstimos e financiamentos de R$ 16,47 bilhões (curto e longo prazos). 

Nenhum dos dois montantes chega aos R$ 20 bilhões mencionados por Rial. Com isso, uma ou ambas as contas estão incorretas e devem ser corrigidas. Há de ser explicado.

O ex-CEO, todavia, frisou ao mercado que os valores passaram pelos balanços ao longo dos últimos anos, e não necessariamente deveriam estar em estoque neste momento. Ou seja, esses pagamentos foram realizados de forma fluída. 

O que acontece é que, efetivamente, mais despesas financeiras foram pagas do que o afirmado pela empresa.

Houve fraude na Americanas?

Rial não entrou no mérito de acusação do mecanismo de fraude, deixando esse trabalho a cargo das auditorias independentes e do comitê externo. Entretanto, afirmou que houve pouca “vontade de falar dos problemas” e falta de transparência na empresa. 

De fato, não há como afirmar se houve fraude. A ferramenta não é ilegal, mas seus pormenores não foram corretamente seguidos no caso da Americanas.

Após mudanças na direção financeira da empresa nos últimos anos, é pouco provável que ninguém tenha percebido o problema que Rial e Covre descobriram em nove dias. 

Em vista da ampla janela temporal em que a prática esteve em execução – Rial citou que ela vinha ocorrendo desde a década de 1990 -, é possível que a empresa nunca tenha sido efetivamente lucrativa, já que as despesas financeiras são detratoras diretas do lucro líquido.

Com base nos balanços mais recentes da Americanas, nos 12 meses encerrados em setembro de 2022, a atual margem líquida da empresa é de ínfimos 0,15%. Ou seja: quase nada do que a empresa vendeu se transformou em lucro no período.

A fraude poderá ser caracterizada se as devidas autoridades entenderem que os balanços foram alterados com fins escusos, que não tivessem como objetivo o benefício da empresa e seus investidores. Ao inflar os números e desrespeitar covenants de dívida (cláusulas que em geral servem para proteger os credores), executivos podem ter sido melhor remunerados, por exemplo.

Houve informação privilegiada na Americanas?

A CVM já abriu três processos para apurar as condutas relacionadas à potencial fraude na Americanas. Os dois primeiros estão relacionados à análise da contabilidade da empresa e da comunicação ao mercado nesta semana.

Já o terceiro, de número 19957.000425/2023-42, corre em sigilo. A autarquia pode avaliar se houve algum tipo de informação privilegiada e posterior negociação de ações com posse de informação desigual.

Dados levantados pela Agência TradeMap atestam essa possibilidade, demonstrando que os papéis da varejista estavam com taxa e volatilidade maiores antes da divulgação do fatídico fato relevante. 

Informações públicas da empresa mostraram que ao longo do segundo semestre do ano passado executivos da varejista venderam R$ 210 milhões em ações. Soma-se isso à declaração de Rial, dando a entender que faltava vontade às antigas gestões em falar dos problemas, e se abre uma possibilidade de mau uso de informação privilegiada.

O Brasil é recheado de casos de insider trading, e alguns chegam a empresas com alto valor de mercado. Marcos Molina, fundador da Marfrig (MRFG3), recentemente foi investigado pela prática.

Em 2017, Joesley e Wesley Batista, herdeiros da JBS (JBSS3), chegaram a ter prisão decretada pelo mesmo motivo. Os casos mais famosos talvez estejam ligados a Eike Batista, por ter sido efetivamente preso por conta de casos envolvendo a OGX. 

De quanto será a capitalização?

Ainda é uma incógnita e terá de ser respondida após a devida auditoria nas contas da empresa. Em 2020, a Americanas captou R$ 7,87 bilhões em um follow-on. A demanda pelas ações foi de R$ 20 bilhões. Dessa vez, a procura deve ser menor, mas o montante necessário deve ser parecido. 

Os acionistas de referência, que haviam sido diluídos na oferta há quase três anos, devem voltar a ganhar representatividade no quadro societário para ancorar a oferta.

O endividamento bruto da empresa, em 30 de setembro, era de R$ 19,32 bilhões. No vídeo divulgado na tarde de ontem, Rial disse que a dívida da empresa está entre R$ 30 bilhões e R$ 35 bilhões. Entende-se, portanto, que o endividamento vai crescer cerca de R$ 16 bilhões com os ajustes contábeis. 

As disponibilidades líquidas são de R$ 14,02 bilhões, então a dívida líquida ficará em aproximadamente R$ 20,97 bilhões. 

Com base no Ebitda (que será recalculado) dos 12 meses anteriores a setembro de 2022, a alavancagem financeira da empresa salta de 1,7 vez para 6,6 vezes, patamar que beira o insustentável neste cenário

O quanto é normal para o setor?

A primeira reação do mercado é avaliar se o mesmo nível de utilização do risco sacado – e o mesmo comportamento nada transparente – pode ser atrelado às outras varejistas.

Em tentativa de acalmar os ânimos dos investidores, a Via (VIIA3) apresentou ao mercado onde essas contas estão em seu balanço. E, de fato, a empresa é mais transparente.

O risco sacado no balanço da dona da Casas Bahia é apresentado na forma de “Fornecedores Convênio”, que nos próximos 12 meses gerará um custo de R$ 2,5 bilhões à varejista, numa taxa de juros de 18,89% ao ano. Não há encargos dessa natureza no longo prazo. 

A Magazine Luiza (MGLU3) coloca em suas notas explicativas que mantém convênios firmados com bancos para o processo de risco sacado. No consolidado, a empresa possuía R$ 8,6 bilhões em passivos relacionados a fornecedores. 

Em outra linha, a empresa diz que tem R$ 3,99 bilhões a pagar aos bancos, sem mais informações. 

Inegavelmente, a prática é comum entre as varejistas. Os investidores, gestores e executivos das empresas certamente ficarão mais atentos a esse item em decorrência do caso desta semana.

Qualquer deslize não será perdoado: em um único dia, a Americanas perdeu R$ 8,37 bilhões em valor de mercado, após cair 77%.

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