Em meio à tempestade perfeita gerada pela pandemia de Covid-19 e guerra entre Rússia e Ucrânia, o mundo passa pela mais intensa onda de aperto nos juros em quase 30 anos, movimento que tem o objetivo de conter a disparada da inflação e ao mesmo tempo antecipar o remédio amargo das taxas elevadas para que isso não tenha que ser feito quando a economia global começar a desacelerar.
Na quinta-feira (21), um dos últimos bastiões de resistência ao endurecimento da política monetária desistiu da batalha: após 11 anos, o Banco Central Europeu deu início ao ciclo de alta de juros na zona do euro, subindo a taxa básica do bloco em 0,50 ponto percentual, o dobro do avanço de 0,25 p.p esperado pelo mercado.
A Europa, que agora possui juros zerados (a taxa anterior estava negativa em 0,50%), tenta assim frear o consumo e uma inflação que alcançou 8,6% em 12 meses, e não está sozinha na decisão de tentar um choque mais agressivo.
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Levantamento feito pelo jornal britânico Financial Times mostrou que 55 bancos centrais tomaram 62 decisões (ou seja, alguns elevaram as taxas nessa proporção em mais de uma reunião) de aumentar seus juros de forma mais intensa, em 0,50 p.p, entre abril e junho.
Foi o maior número de altas desse tamanho desde 2000, o que levou a responsável pela estratégia de câmbio do Rabobank, Jane Foley, a comentar que “0,50 [p.p] é o novo 0,25” para as autoridades monetárias pelo mundo.
“Estamos nos maiores níveis inflacionários em décadas, 30 ou 40 anos, dependendo do país que você pega”, afirma o analista especializado em economia internacional da Garde Asset Management, Lucas Zaniboni. “Isso seja no índice cheio, seja nos núcleos [medida de inflação que exclui itens mais voláteis]. Os banqueiros centrais estão pegando esse mundo novo, que justifica todo esse movimento de altas de juros mais abruptas.”
Além do combate urgente à inflação, os bancos centrais tem elevado os juros com força para evitar o pior cenário quando o assunto é política monetária: serem obrigados a subir taxas em um momento de recessão, que já dá alguns sinais de que vai chegar em alguns países.
“Vemos nos últimos meses muitos bancos centrais preocupados em dar uma máxima de alta de juros, dado que o risco de queda da atividade está aumentando. Ninguém quer dar aumento de juros em um cenário de recessão”, diz Zaniboni.
Enquanto que para muitos países esse é um processo recente, o Brasil vem elevando a Selic, hoje em 13,25% ao ano, desde março do ano passado, o que faz o país ocupar o terceiro lugar no ranking das taxas mais altas das principais economias do mundo.
Fica atrás somente da Argentina, que no mês passado elevou seus juros em 3 p.p, para impressionantes 52% ao ano, e da Turquia, que a despeito de uma inflação de 78,62% em 12 meses encerrados em junho, manteve a taxa em 14% pela sétima reunião consecutiva (o banco central é pressionado pelo presidente turco, Recep Erdogan, a manter os juros nesse patamar).
Quando se fala na lista das grandes economias do mundo com os maiores juros reais do mundo (ou seja, descontada a inflação), o Brasil encabeça a lista. Apesar do forte aumento na Selic, o aumento do IPCA, índice oficial de inflação, ainda se mantém em 11,8% nos 12 meses encerrados em junho.
Alta de 75 e até de 100
Maior economia do mundo, os Estados Unidos começaram a subir os juros em março, com um ritmo mais leve, de 0,25 p.p.
Mas não demorou para o Federal Reserve perceber que isso não seria suficiente, e o passo foi sendo apertado até culminar no aumento de 0,75 p.p da última reunião, o mais agressivo desde novembro de 1994, quando o banco central americano era comandado por Alan Greenspan.
Apesar de ter sido aventada a chance de uma alta ainda maior, o aumento deve se repetir na próxima reunião do Fomc, colegiado do Fed, na semana que vem.
Ou seja, o posto de economia do G7 (grupo dos países mais industrializados do mundo) com maior aumento nos juros básicos desde o final dos anos 90 deve ficar mesmo com o Banco do Canadá, que surpreendeu os mercados na semana passada com um aperto de 1 p.p ao citar uma inflação “mais alta e mais persistente”.
Especialistas apontam que, quando a pandemia de coronavírus começou a bagunçar as cadeias de produção pelo mundo, as autoridades monetárias acreditavam que os preços estavam subindo somente pela oferta prejudicada de matérias-primas e insumos – fator sobre o qual elevar juros não tem efeito.
Mas com o avanço da vacinação no mundo todo, a demanda por bens e serviços começou a voltar de forma sincronizada, justamente em um momento que a Rússia decidiu invadir a Ucrânia, trazendo à mesa um novo choque inflacionário.
“Estamos vivendo um processo sincronizado de aceleração da inflação. Nos EUA, por exemplo, a expectativa era de um processo transitório de alta de preços, depois passou para transitório e persistente, e agora se chega à conclusão que esse processo é persistente”, aponta o economista-chefe da Santander Asset, Eduardo Jarra.
Na avaliação do especialista, a alta de preços no mundo se mostra bastante disseminada, passando por diferentes grupos: commodities, serviços e bens de consumo, todos em trajetória de aceleração.
“É um quadro diferente do imaginado há algum tempo atrás”, aponta. “Havia algumas premissas de que as cadeias produtivas se ajustariam em um tempo X. Depois, isso passou a ser X + Y, depois X+Y+Z”, pondera Jarra.
Para o analista da Garde, a maior parte dos bancos centrais errou na avaliação da inflação no início da pandemia, e agora estão correndo atrás do prejuízo. “Tudo começou com a impressão que eram somente fatores de oferta que estavam gerando a trajetória da inflação. Mas hoje em dia há uma inflação de demanda”, disse.
Vem recessão global por aí?
Como consequência desse movimento, pode-se esperar uma recessão da atividade econômica global, como vem sendo precificado pelos mercados financeiros?
Para Jarra, da Santander Asset, esse não é o cenário mais provável, o que não quer dizer que não tenha uma chance grande de se concretizar.
“Já começamos a ver os efeitos sobre as condições financeiras [sobre os juros cobrados por empréstimos], e isso de certa forma já começa a ter seus impactos também sobre a atividade econômica. Já há algumas revisões baixistas para projeções para PIB [Produto Interno Bruto].”
Na avaliação do especialista, o mais provável é o cenário de soft landing, ou seja, uma desaceleração mais suave da economia americana, a maior do mundo.
“Mas também tem uma probabilidade grande de recessão. Nos EUA, a inflação está alta e a política de aperto está encomendada. Se a inflação voltar a surpreender negativamente, não é difícil vislumbrar um cenário pior.”
Zaniboni lembra que o primeiro canal de transmissão de juros mais altos nos EUA costuma ser o imobiliário, e este já vem dando sinais de piora, com a divulgação de que os pedidos de hipotecas já se reduziram em 6,3% na primeira quinzena deste mês, pior nível desde o ano 2000.
“Além disso, estamos vendo queda nas vendas no varejo. Mas de qualquer forma a situação anda complicada, porque a inflação não para de subir. Talvez no próximo mês haja alívio por causa dos combustíveis, que caíram junto com o petróleo. Mas a tendência geral é da alta de preços não dar muitos sinais de arrefecimento”, avalia o analista da Garde.
Já o Banco do Povo da China decidiu, nesta semana, manter suas taxas básicas de juros inalteradas. “A inflação na Ásia está na contramão do mundo, por causa da política de lockdowns para evitar novos casos de Covid”, explica Zaniboni.
E o que isso quer dizer para o Brasil?
A economia brasileira deve ser duplamente afetada pela onda de aperto monetário. Uma das consequências é o dólar mais alto, o que encarece a importação de produtos, levando à tendência de mais aumentos de preços. Além disso, o Brasil passará a vender menos produtos para o mundo.
“É o pior cenário possível para o Brasil. Com o mundo desacelerando, a gente acaba exportando menos”, diz Zaniboni. “E ainda tem toda a consequência secundária do fato de o aumento de juros em grandes economias prejudicar as moedas emergentes. Tem uma rodada de desvalorização do câmbio, e pioram as perspectivas para a inflação.”
Esse cenário pode colocar ainda mais pressão sobre o Banco Central, que na próxima reunião, em agosto, deve encerrar o ciclo de aumentos na Selic, levando a taxa básica a 13,75% ao ano. Isso porque juros mais elevados em grandes economias retiram atratividade de ativos de países emergentes como o Brasil, reduzindo o fluxo de recursos estrangeiros e colocando mais pressão no câmbio (e, consequentemente, na alta de preços).
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“Do segundo semestre em diante, vamos passar por uma desaceleração importante”, avalia Jarra.
Apesar da tendência do dólar colocar mais lenha na inflação, ele lembra que a economia mais fraca tende a ter um efeito desinflacionário, o que pode contrabalancear esse efeito. “Uma atividade mais fraca tende a ajudar o Banco Central.”