Lá em janeiro, tudo era 3% para os analistas do mercado financeiro ouvidos toda a semana pelo Banco Central sobre suas projeções para a economia. A taxa básica Selic terminaria 2021 em 3,25% ao ano, o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) em 3,34%, a economia cresceria 3,41%.
Passados quase 11 meses, reviravoltas no Brasil e no mundo mudaram radicalmente esse cenário. A realidade de choques globais de oferta, crise hídrica e irresponsabilidade fiscal se impôs, e terminaremos o ano com inflação e juros próximos a dois dígitos.
Por outro lado, apesar do atraso, a vacinação surpreendeu pela rapidez e efetividade para reduzir os casos de coronavírus por aqui, e a reabertura da economia permitiu uma atividade mais forte do que o esperado, quase encostando nos 5%.
Entre os grandes indicadores da situação macroeconômica do país, o único que não surpreendeu tanto foi o câmbio: os analistas ouvidos pelo Focus esperavam um dólar valendo R$ 5, e o que se verificou foi um real um pouco mais desvalorizado, em R$ 5,50.
Veja abaixo o antes e depois do boletim:
Pouca oferta para uma demanda em alta
Como o BC divulgou nesta segunda, dia 22, analistas já esperam que o IPCA, índice oficial de inflação, termine este ano em 10%, uma variação de preços três vezes maior do que a aposta inicial, em janeiro.
São muitos os fatores que influenciaram nessa guinada de expectativas, mas o principal deles foi a profunda desorganização das cadeias globais de produção por causa da pandemia de coronavírus, que ainda se mantém.
Em um primeiro momento, houve uma paralisação repentina na fabricação de bens, que foi sendo retomada aos poucos. Mas com os estímulos à economia e o avanço da vacinação no mundo, a demanda voltou forte e sincronizada em diversas economias importantes. De repente, a oferta simplesmente não foi suficiente para fazer frente à demanda, e os preços subiram.
“Energia, gasolina, diesel, gás de cozinha, tudo isso gerou um constrangimento grande nos preços, assim como os alimentos, que subiram com força”, afirma o economista André Perfeito, da Necton, que faz parte das instituições Top 5 da pesquisa Focus (aquelas que mais acertam as previsões). “Tivemos uma série de problemas de ordem micro que são difíceis de se avaliar do ponto de vista macro”.
Um ponto relevante para esse cenário foram os problemas vividos pela China, segunda maior economia do mundo. Nos seus últimos planos quinquenais (para cinco anos), em busca de ser mais relevante geopoliticamente, o gigante asiático se comprometeu cada vez mais com metas de redução de emissões de CO2 e de consumo de energia.
De acordo com estimativa do Goldman Sachs, até 44% da atividade industrial chinesa foi afetada por problemas no fornecimento de energia neste ano.
O Brasil viveu um problema adicional: o tamanho da crise hídrica surpreendeu, obrigando a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) a impor taxas adicionais cada vez maiores na conta de energia (a chamada bandeira vermelha).
“No final do ano passado, como a Aneel deu um reajuste surpresa na energia elétrica, se falava até na possibilidade de ela ter um peso negativo na inflação. Mas agora estamos lidando com 20% de alta. Existe aí um problema climático que pega na veia do IPCA”, explica o economista Marco Caruso, do Banco Original, instituição também está entre as casas que mais acertam projeções do Focus.
Ele lembra que, a princípio, a pandemia de coronavírus foi encarada pelos economistas como deflacionária, e não o contrário. “No epicentro da pandemia, a primeira leitura foi: essa crise é deflacionária. As economias vão travar e a demanda vai para zero. E de fato, o consumo caiu demais”, aponta. “Mas num segundo momento, a pandemia se transformou em inflacionária. A oferta caiu demais, e não conseguiu acompanhar a alta de demanda decorrente dos estímulos dados às economias”.
Juros em alta
Então, a nossa taxa básica de juros, a Selic, teve que subir tanto neste ano por causa dessa inflação decorrente das peculiaridades da pandemia, além da nossa crise de energia? No início do ciclo atual de aperto monetário, que começou em março, sim.
Mas nos últimos meses, o grande problema foi a necessidade de o BC dar uma resposta à altura da decisão do governo de alterar o teto de gastos (que limita o crescimento das despesas à inflação) para elevar despesas em 2022, ano eleitoral, pagando um Auxílio Brasil de R$ 400.
Lembrando que a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) dos Precatórios, em tramitação no Congresso, muda o teto para abrir espaço de mais de R$ 100 bilhões a mais no Orçamento do ano que vem.
“A inflação de fato puxa os juros para cima, mas a gente não imaginava o rompimento do teto de gastos. Desde que o Paulo Guedes [ministro da Economia] falou em tempestade de precatórios, e depois em waiver [licença para gastar], a estrutura de juros foi profundamente alterada”, avalia Perfeito, da Necton.
Após absorver o impacto dessa alteração na âncora fiscal do país, o mercado passou a lidar com o receio de que, se a proposta não passar no Senado, o governo prorrogue o auxílio emergencial, o que implicaria em ainda mais despesas. A expectativa é que a taxa básica de juros encerre este ano em 9,25% ao ano e em 11,25% ao ano em 2022.
“Eu credenciaria uma parte relevante dessa surpresa com os juros à questão fiscal, que piorou muito as expectativas para a inflação”, diz Caruso, do Original.
Crescimento maior com a vacinação
A surpresa positiva neste ano foi que a rapidez e a eficácia da vacinação contra o coronavírus no Brasil permitiram que o país crescesse mais do que o esperado, apesar da demora para o início da imunização no país.
“A mobilidade voltou com força, e muitos setores já estão normalizados”, afirma Caruso. “Tivemos a volta das famílias consumindo serviços, e isso se traduz em repasse de preços. Esse PIB que é mobilidade tem a ver com a vacinação, e também conversa com as pressões inflacionárias adicionais que estamos vivendo”.
Ao avaliar esse cenário, Victor Beyruti, economista da Guide Investimentos, lembra também o elevado nível de incerteza sobre os rumos da pandemia no início deste ano.
“Havia muita insegurança em relação às vacinas e à reabertura da economia. Estávamos em meio a uma nova onda da pandemia na virada do ano, como seria a reabertura. O mercado acreditava que a recuperação seria mais lenta, e que a inflação não viria tão forte, já que o desemprego estava elevado”.
Para Perfeito, essa alta maior do PIB está relacionada a um efeito que os economistas batizaram de carregamento estatístico. No quarto trimestre do ano passado, a economia cresceu 3,1%, um patamar de atividade mais alto do que era esperado e que se estendeu (ou foi “carregado”, para usar o termo técnico) para o resto do ano.
Esse carregamento pode ser positivo ou negativo. Um último trimestre mais forte ajuda o próximo ano a já começar em um patamar mais alto. “Quando as projeções do Focus foram feitas em janeiro, ainda não se sabia que o PIB do último trimestre havia sido mais forte. Isso gerou um carrego estatístico maior”, diz o economista da Necton.
E 2022?
As perspectivas para o ano que vem não são boas. A inflação deve arrefecer um pouco, mas mesmo assim os analistas consultados pelo Boletim Focus já esperam uma alta de quase 5%, ou seja, quase no teto da meta para o IPCA do ano que vem, que é de 3,5%, com intervalo de tolerância de 1,5 ponto para cima e para baixo.
Essa redução no ritmo da variação de preços deve acontecer por causa da normalização das condições hídricas do país e pela forte elevação da taxa básica de juros, que deve terminar 2022 acima dos 11%.
Isso prejudicará, e muito, a atividade econômica. Tanto que analistas já esperam uma expansão de somente 0,70% em relação a 2021. “Vamos ver um arrefecimento mais forte da economia, com desemprego e inflação elevados. Isso vai pesar sobre a atividade econômica”, avalia o economista da Guide.